Cartas...
Um conjunto epistolar original sobre o regime político português ao longo dos últimos 50 anos e as suas consequências no modelo social atual.
Primeira Carta
Caros filhos e netos,
esta carta que vos escrevo tem a mágoa dos anos em que ficou por escrever e tem, também, a mácula de, precisamente, não ter sido escrita antes. Deveria tê-lo feito. Devia…
Devia-vos, isso. A mim também.
Eu sou um homem. Sou pai de família. Sou avô. Sou —. Sou um português que não se resigna, exceto no que antes afirmei e agora repito: tardou… este passo, esta frontalidade. Penitenciar-me-ei longamente.
Não sei desde quando sou homem, nunca quanto a isso tive qualquer debate ou questão. Por isso dou menos importância ao ser homem, talvez, como dado adquirido que é. Não poderia eu atender de outro modo. Contudo, lembro-me claramente de saber que cresci com a consciência de estar no meu tempo. Tornei-me pessoa com responsabilidades, com a evidente noção de que seria outro. Não aquilo que, de repente, num sopro e salto dos acontecimentos, esperavam que viesse a ser. Então chamar-me-iam —, se soubessem…
Pior ainda se soubessem, além disso, que tinha em mim a verdade de que me sentia e desejava o que eles achavam —. Palavra fácil dos que atiram palavras…
Sim, então eu era isso. Desde muito novo. De sempre. Calado, mas isso.
Poderão perguntar-se vocês que lêem, quão novo era e digo-vos que não conhecia o significado da palavra quando lhe conhecia já o gosto. Quando muitos ao redor sibilaram cantigas de escárnio, com vozes de longe, estrangeiras, mal engatilhadas, eu, por meu turno, sabia de cor o valor da convicção. O valor do meu lugar e de o conhecer; o valor do lugar dos outros e qual seria, esse lugar. Mesmo que para alguns, essa posição e lugar fossem mais altos ou elevados que o meu. Sentia e sabia que, na naturalidade da Ordem, estava o meu percurso.
Nunca vivi com medo e nunca esperei ficar silencioso para sempre. Até porque, imagino que recordem, procurei sempre ser sincero convosco. Na convicção. Nas pequenas palavras e grandes gestos. Eu, pai, avô, —. Por inteiro. Espero que me concedam esse crédito. Espero que mo reconheçam. Não todos, talvez, mas a maior parte de Vós. A maior parte dos que lê agora as minhas palavras.
O que me faltou foi a frontalidade. Um homem não pode, jamais, ter medo, mas confesso que tive receio, por vezes. Se me falhou a força da voz, nunca se me ausentou a coragem de manter esta chama acesa e legá-la. A Vós, claro e em primeiro lugar, porque são meus, do meu sangue, da linhagem que encarno e jurei manter. Somos todos parte do grande edifício que se constrói.
Dizia que tive receio. Em ocasiões. Sim. Viver mais de 50 anos sob o calor de uma fogueira que apenas procurava lenha e saber-me parte do que a poderia alimentar… tive receio.
Por mim e por Vós.
O que seria desse legado que a mim confiaram e eu devia partilhar com os meus? E não apenas com os meus, mas com outros que não tivessem quem por eles? O que seria? Como aceitar a sugestão de um país e de uma sociedade que desdenhavam do seu potencial e do seu destino? Como aceitar?
Por isso nunca me resignei, gerando o espaço para que um dia pudesse, sem sofrimento a terceiros, colocar-me perante todos. Sim, sou um homem. Sim, sou pai e avô. Sim… sou —. Se o dizem, porque não? Ao diabo com as voltas de todas as hipocrisias de quem teme os que mandam, quando há sempre quem mande; e pior. Quem mande sem saber mandar. Sem ter linhas unidas pela fortaleza do ultrapassar dificuldades. Há um lugar para esses que destroem o que outros antes fizeram. Quem acha que no dia ontem está tudo mal. Quem acha que na semana sem folga de lei só havia horror.
Se não me calo mais, é por Vós. Sem retrair, ou retirar uma vírgula ao meu assento. Sim, sou. Escapado à conversão forçada que sobre mim tantas vezes pendeu. Resisti. A despeito de ser mais fácil ter percorrido outras veredas. Vi isso a cada olhar. Aos colegas. Aos amigos. Aos cobardes.
Resisti escolher outras companhias. Defender ou levantar outras bandeiras. Sou o que sempre fui, sem escolha… Não podemos escolher o que o nosso íntimo decidiu ser. Não podem transformar-nos no que nunca fomos. Pode mudar-se a cor da alma, ou a aura da inocência? Escolho ser homem, como mandam preceitos a que devoto a minha consciência. Sou —, sem escolha, mas com entrega. Plena.
Se me desculpo, a Vós, é por tudo o que disse antes; por ter usado palavras mais suaves que diretas e claras. Mas agora, agora, podemos juntos seguir, confiantes nas palavras uns dos outros. Sem máscaras, se é que alguma existe quando procedem corretamente as pessoas da mesma cepa.
A bem, sempre,
Eu
Intervenções










Intervenção #1
12.08.2025 CCCV - P1
Reunidos em semi-circulo, Joana Gomes Martins procedeu à leitura de quatro cartas. Esta foi a primeira intervenção e leu-se — como se lerá nas seguintes — a primeira e última cartas. A terceira e a sétima foram o foco da sessão. Um papel vermelho ergueu-se pela mão mais jovem na plateia. Os restantes ouvintes permaneceram imóveis até ao fim da leitura. Só depois se ouviram outras vozes, insistentes, durante quase mais de duas horas.











Intervenção #2
30.08.2025 CCCV - P2
Com novos ouvidos prontos a escutar, Joana Gomes Martins apresentou-se e procedeu à leitura de quatro cartas. Além da primeira e última cartas, focamos as nossas atenções nos conteúdos da segunda e décima. À interrogação “Estamos bem?”, os presentes anuiram, mas a sua linguagem corporal era de manifesto desconforto. A leitura das cartas procedeu sem qualquer interrupção, à exceção de gravações, planeadas, com vivências em período de ditadura.
Questionados novamente: “Estamos mesmo bem?” a resposta surgiu em forma de dúvidas e partilhas, algumas emocionadas, que se estenderam por cerca de duas horas.












Intervenção #3
08.09.2025 Aura Nuda
O espaço da Aura Nuda é idílico. As plantas a verter pelas escadas; a luz suave de final de tarde e uma bebida a acompanhar trouxe-nos uma serenidade que a leitura das cartas não prolongou.
Se por momentos até nos identificamos com o homem que as escreve, noutros temos de considerar as consequências de tudo o que propõe.
Também nesta intervenção houve lugar à troca de ideias e experiências e, enquanto a noite caia, vimo-nos forçados a considerar: “Então e agora?”.













Intervenção #4
15.09.2025 Carmo'81
A leitura começou feita de sombra. Não na sombra, esclareça-se. Houve luzes ligadas, mas foi a silhueta de Joana Gomes Martins — recortada num pano branco — que os presentes observaram. Àquela presença intercalaram-se outras vozes, vídeos e canções.
Se por um lado a parede de pano tornou algo nas cartas mais impessoal, a essência do que transpareciam continuou a perturbar. O que fazemos com este desconforto, onde chegamos e para onde vamos, foram os temas que ficaram em discussão até depois da hora de jantar.













Intervenção #5
24.09.2025 Museu de História da Cidade de Viseu
Reunidos primeiro no vão das escadas e depois no último piso do Museu de História da Cidade de Viseu, escutámos a leitura de duas novas cartas pela voz de Joana Martins. Questionou-se a instituição da fé e o poder das crenças. Falou de emigração e de imigração. E, pela primeira vez, houve uma carta de resposta às cartas que escutámos e discutimos durante cinco intervenções. Clara Spormann deu-lhe voz e a sala segui-lhe o exemplo na retórica. Outro fim de tarde, virado noite, que nos deixou com muito em que pensar.
Próximas Intervenções
24 SET. 2025
18:30 / quarta-feira
Museu de História da Cidade de Viseu
R. Árvore 1 7, 3500-087 Viseu
ENTRADA LIVRE
RESERVAS@MEUSDOMEUSANGUE.PT
VER NO MAPA
Estamos bem?
Talvez um formigueiro percorra o corpo sempre que se escutam algumas palavras. Talvez nada aconteça. As cartas merecem resposta? O diálogo ainda é possível?
EQUIPA NUCLEAR: Joana Gomes Martins, Luís Belo, Rui Macário Ribeiro
EQUIPA NUCLEAR
Joana Gomes Martins
Luís Belo
Rui Macário Ribeiro
